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04.Out - Cuidado Paliativo mais que um atendimento a quem está morrendo
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Cuidado Paliativo mais que um atendimento a quem está morrendo

No segundo sábado de outubro, que esse ano é 12, comemora-se o Dia Mundial dos Cuidados Paliativos, quando se realizam atividades para conscientização sobre esse tipo de assistência que não se limita às pessoas que estão morrendo e que muito menos se relaciona com deixar de fazer ou com eutanásia, e que “não é um tratamento de segunda linha, e sim, de alta especificidade” (1).


Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2002) “Cuidado Paliativo é uma abordagem que aprimora a qualidade de vida dos pacientes e famílias que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras da vida, através da prevenção e alívio do sofrimento, por meio da identificação precoce, avaliação correta e tratamento da dor e outros problemas de ordem física, psicossocial e espiritual”.


Seus princípios são: controle da dor e de todos os sintomas que causem desconforto e sofrimento; ver a morte, não como um fracasso da medicina, mas como nossa mais intrínseca característica; buscar a qualidade de vida através da promoção do bem-estar físico, psicológico e espiritual; não abreviar a vida por meio da eutanásia, mas também não prolongar o processo de morte por meio da distanásia (obstinação terapêutica); desenvolver um atendimento multiprofissional e interdisciplinar já que cada área tem suas limitações e suas competências; abordar a dor total (física, psíquica, social e espiritual) resgatando assim a identidade pessoal do paciente e minorando seu sofrimento; estabelecer com paciente e seus familiares uma comunicação aberta, já que o compartilhar de verdades facilita a adaptação à nova realidade, além de resgatar o valor do paciente como pessoa dotada de competência e autonomia; oferecer apoio aos familiares, o que se prolonga para a fase do luto após a morte do paciente. Introduzir os Cuidados Paliativos de forma precoce, preferencialmente já ao diagnóstico.


Cuidado Paliativo não se restringe a quem está morrendo; para esse tem uma indicação plena, mas em sua concepção é algo mais amplo como bem elucidado na definição da OMS e nos princípios anteriormente citados.


Precisamos entender que o Cuidado Paliativo pode e deve ser aplicado nas cinco fases de uma doença: fase do diagnóstico, da evolução da doença, da terminalidade, final e vida e de luto após a morte do paciente. E para facilitar esse entendimento vamos a um exemplo prático.


Dona Gertrudes, 60 anos, em abril de 2016 teve o diagnóstico de câncer de intestino. Neste ponto a medicina intervencionista teve sua ação plena (cirurgia, quimioterapia, radioterapia...) Nesta Fase inicial o Cuidado Paliativo teve a função de comunicação do diagnóstico; e aqui precisamos entender que comunicação é diferente de informação. Informar o diagnóstico do câncer é algo pontual; comunicar é compartilhar a notícia, fazer entender, interpretar o que isso significa para o doente, o impacto que provoca na sua vida e na de sua família, ajuda-los a absorver a nova realidade, desmistificar conceitos, entender o processo de tratamento, conhecer as possibilidades, os percalços e como esses podem ser superados ou prevenidos, o que deve ocorrer de forma repetitiva conforme a necessidade individual. Também foi a fase de apresentar o Cuidado Paliativo e introduzir a discussão de prognóstico e pensamento no futuro, assim como integrar a família e a equipe multidisciplinar.


De maio de 2016 a maio de 2019 Dona Gertrudes esteve sob tratamento oncológico; realizou quimioterapia, foi internada por intercorrências do tratamento, esteve em UTI.  Nesta fase de evolução da doença o Cuidado Paliativo teve a função de  acompanhamento reforçando o tratamento proposto, as possibilidades, as restrições, acompanhou os percalços, os medos, as novas etapas de avaliação, manteve a comunicação contínua, cuidou da dor total  que nesta fase pode ser uma necessidade intensa devido as intercorrências e sofrimentos por elas geradas; manteve a discussão de prognóstico e pensamento no futuro e continuou integrando a família e a equipe multidisciplinar de forma mais intensa.


Em junho de 2019 Dona Gertrudes teve o diagnóstico de carcinomatose peritoneal (câncer disseminado por toda cavidade abdominal), além de metástase pulmonar e hepática intensa, apresentando caquexia (perda de peso e atrofia muscular com grau importante de enfraquecimento). Nesta fase da terminalidade a intenção do Cuidado Paliativo e sua ação predominante foi a de discutir a suspensão de medidas que levassem à distanásia (ou futilidade médica ou obstinação terapêutica), discutir os planos de final de vida, integrar e apoiar a família de forma mais consistente, pois geralmente podem precisar desse apoio mais intensamente que o próprio paciente e também integrar a equipe multidisciplinar. A comunicação seguiu sendo uma importante forma de assistência.


Agosto de 2019 Dona Gertrudes apresentou obstrução intestinal maligna, começou com dispneia intensa (falta de ar), dor importante, vômitos persistentes e um sofrimento existencial importante, pois o que mais lhe incomodava eram os vômitos com conteúdo fecal decorrente da obstrução. Nesta fase final de vida a função do Cuidado Paliativo foi a de promover uma assistência plena para a excelência do controle de sintomas e das medidas de conforto, intensificar a abordagem da dor total, integrar e dar maior assistência à família, pois não é incomum que ocorram ansiedades e conflitos interpessoais e integrar a equipe multidisciplinar na assistência plena ao ser biográfico.


Agosto 2019 dona Gertrudes faleceu. Nessa fase após a morte o Cuidado Paliativo ofertou uma assistência à família enlutada, dentro das suas possibilidades e da aceitação familiar. 


Ainda que tenhamos usado o exemplo do câncer para facilitar o entendimento, o Cuidado Paliativo não se restringe a esta doença, mas a toda aquela que seja progressiva, com risco de morte e que leve a sofrimentos.


Como já foi dito o cuidado de final de vida é uma parte importante dos Cuidados Paliativos e seus objetivos são: 1) morte segura e confortável “estou aqui, a seu lado, nesta vigília permanente e afetiva, que se chama acompanhamento”, pois o medo do abandono e a insegurança podem ser maiores que o medo da própria morte. (2) 2) autodeterminação no gerenciamento do processo de morrer “as famílias pensam sempre que o doente não vai suportar a verdade. Não tomam consciência de que ele já sabe a verdade e está sofrendo sozinho”. (2) 3) Luto eficaz “o luto é o acontecimento vital mais grave que a maior parte de nós pode experimentar”. (3) Os objetivos a trabalhar são as perdas, as limitações, as conquistas possíveis, a esperança realista, a dignidade, a reconciliação. “Nos últimos momentos de vida a necessidade de troca com os outros se torna intensa. O corpo deve abandonar-se a outras mãos. É o tempo de troca e reconciliações e que abrirá possibilidade de perdão”. (3)


O cuidar humanizado exige esforço das pessoas para serem superados todos os obstáculos que se apresentam pessoais, bioéticos e institucionais. Exige amizade entre os envolvidos, pois só assim pode-se pensar em liberdade e cumplicidade, tão necessárias em Cuidados Paliativos, pois “como acontece com todas as amizades, uma amizade médica é caracterizada por um apropriado equilíbrio entre a ajuda e o não interferir no jeito do ser humano. O profissional amigável faz o que é melhor para o paciente, mas não o faz à custa da liberdade do paciente”. (5)


Para isso busca-se a criação de um serviço com profissionais que entendam e compartilhem a visão do paciente, dispondo-se a cuidar quando curar não é mais possível. Visando ensinar e aprender a cada dia, não o técnico, como o humano, e a aceitar as limitações humanas e procurando ajudar o próximo – “a humanização dos cuidados em saúde pressupõe considerar a essência do ser, o respeito à individualidade e a necessidade de construção de um espaço concreto nas instituições de saúde que legitimem o humano das pessoas envolvidas”.(6)


Auxiliar uma pessoa em seu sofrimento diante do processo de morte é tarefa árdua, que nem podemos classificar de possível, pois para isso há a necessidade de uma compreensão emocional por vezes inatingível – “compreender o que causa sofrimento a uma determinada pessoa é um desafio, pois a própria pessoa que sofre pode não saber o que é”.(6)


Humanizar é “acolher as angústias do ser humano diante da fragilidade do corpo, mente e espírito”, sobretudo é ter “vigilância ética, imperativo fundamental em não deixar que a máquina seja mais importante que o ser humano”. (6)


A espiritualidade é algo importante àquele que sofre ou se aproxima da morte, independente de questões religiosas, já que “os Cuidados Paliativos, sem a dimensão espiritual, seriam os cuidados incompletos ou parciais, não contemplando a visão holística da pessoa, na atenção integral que deveria estar presente na prestação desses cuidados especializados”. (7)


A liturgia é a celebração da vida de Cristo na vida do povo. Em Cuidado Paliativo, ao pé do doente temos uma dimensão sacerdotal: liturgia do banho de leito, liturgia da alimentação, liturgia do estar junto de alguém que está prestes a se despedir da vida. Todos são atos de amor que se transformam em ações sacramentais ao ato de cuidar. (6)


A finalidade do Dia Mundial dos Cuidados Paliativos então é essa – apresentar essa área do conhecimento, sua importância e desmistificar o entendimento de que é para quando não se tem mais nada para fazer e o paciente está à beira da morte. Mas fazer entender que “nossa meta não é mudar a forma como as pessoas vão morrer, mas a forma como vivem as pessoas que estão morrendo e como as famílias experimentam e vão recordar a sua morte”. (8)


E que com isso todos “possam aprender a não roubar a esperança nem entregar uma ilusão. E, sobretudo que possam aprender a estar junto, que é mais que estar e menos que sofrer”. (9)


(1) Kovács (2) Hennezel (3) Parker (4) Rodrigues (5) Drane;Pessini (6) Pessini (7) Mendes (8) Donner (9) Ladeira


Texto escrito em comemoração ao Dia Mundial dos Cuidados Paliativos 2019 cujo tema é - Meu cuidado. Meu direito


João Batista Alves de Oliveira. Médico Paliativista pela Sociedade Brasileira Clínica Médica/Associação Médica Brasileira – CRM 107470 – RE 64171-1


paliativo2015@gmail.com


 


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